Vista de Delft
Nova Iorque: caminhos do desejo
Daniel Saldaña París

Nesta «Vista de Delft», o romancista e ensaísta Daniel Saldaña París escreve sobre Nova Iorque, a cidade onde mora, dividindo-se entre ela e a sua Cidade do México. Neste testemunho, há, ao mesmo tempo, proximidade e distância, obtidas a partir de um olhar que vem do exterior e se torna interior e até íntimo na descoberta que faz desta fascinante urbe norte-americana, comparando-a com outras e evocando tudo o que, sobre ela, leu, viu e viveu.

Georgia O'Keeffe

Georgia O’Keeffe, Night, New York [Noite, Nova Iorque], 1927 © Fotografia: Scala, Florença / Art Resource, Nova Iorque / The Georgia O’Keeffe Museum, Santa Fé

 

Não acredito nesse mito de Nova Iorque como o lugar aonde se vem para começar uma ascensão ambiciosa. É melhor chegar humilhado, envergonhado; assim, desvanecem-se de alguma forma as hierarquias da cidade e esta abre-se, oferecendo mais lugares onde nos escondermos e também mais espaço para transitar, para nos descobrirmos em esquinas recônditas, entre a sombra e a escuridão.

Francisco Goldman, Monkey Boy

aeroporto internacional benito juárez / jfk international airport

Em Fevereiro de 2022, recebi uma chamada que mudaria radicalmente a minha vida: a Biblioteca Pública de Nova Iorque concedera-me uma bolsa para escrever um livro. Teria de mudar-me para aquela cidade em finais de Agosto.

Nessa altura, estava casado com a Sofía há sete anos e a nossa relação passava por uma crise de cuja gravidade não queria dar-me conta. Fazíamos terapia de casal uma vez por semana e eu mudei- -me para Cuernavaca, uma hora a sul da Cidade do México, para darmos mais espaço um ao outro. Os meus amigos diziam-me que tinha chegado o momento de aceitar a derrota e de me separar, mas, em vez disso, dupliquei a aposta e pedi à Sofía que se mudasse para Nova Iorque comigo. Ela aceitou. Conseguíamos viver ambos da bolsa, que era só de nove meses: tempo suficiente para conhecermos a cidade a fundo sem chegarmos a odiá-la. Começámos a tratar das formalidades do visto e a sonhar com os bairros onde viveríamos.

A Sofía disse-me que, antes de partirmos para Nova Iorque, queria ir a Buenos Aires visitar a família, de modo que uma manhã levei-a ao Aeroporto Internacional da Cidade do México. Despedimo-nos no carro com um beijo rápido, sem grandes ânsias, pensando que ficaríamos separados durante três semanas, quando, na realidade, essa foi a última vez que nos vimos.

Poucos minutos depois, na sala de embarque do seu voo, a Sofía conheceu um homem com quem se entendeu imediatamente. Quando aterraram em Buenos Aires já estavam apaixonados.

Duas semanas mais tarde, numa videochamada com má ligação a que também se juntou a nossa terapeuta de casal, a Sofía disse-me que ficaria a viver em Buenos Aires e que queria o divórcio. Com um fio de voz, disse-lhe que percebia e que lhe desejava o melhor. No dia seguinte, meti as coisas dela em caixotes de cartão e guardei-as num armazém.

Passei um mês atordoado, a chorar muito e a comer pouco. Passei outros quatro meses ainda atordoado, mas a sentir-me mais leve e a usufruir da Cidade do México como só consigo fazê-lo quando sei que estou prestes a ir para outro lado.

Nesses meses, também terminei a tradução do romance de Francisco Goldman onde fui buscar a epígrafe deste texto. Ao traduzir esse parágrafo para espanhol, soube imediatamente que tudo ia correr bem ou, pelo menos, que existia um futuro e que Nova Iorque se abriria para mim como uma promessa de redenção.

"O meu método era dizer que sim a tudo, avançar sem medo, permitir que fosse a própria cidade a marcar--me o passo. Nova Iorque exige uma entrega sem contemplações. Era melhor cavalgá-la a deixar-se pisar por ela."

Georgia O'Keeffe

Georgia O’Keeffe, New York Street with Moon [Rua de Nova Iorque com lua], 1925 © Fotografia: Scala, Florença / Colecção Carmen Thyssen- -Bornemisza / Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, Madrid

 

61 east 11th street

Cheguei a Nova Iorque numa quarta-feira ao meio-dia. Na quinta, conheci a Catherine. Falámos sobre os nossos respectivos divórcios enquanto eu bebia uma cerveja e ela, um copo de vinho. Depois de quatro horas à conversa, ela perguntou-me se eu tinha planos para domingo: queria experimentar LSD, que nunca consumira, no apartamento de uma amiga onde estava temporariamente a viver, em Village. Convidava-me a partilhar uma dose com ela. Aceitei.

Além disso, nesse primeiro dia, um editor que conheci convidou-me a participar na leitura dramatizada de uma farsa teatral, durante o lançamento de uma revista. Também aceitei. O meu método era dizer que sim a tudo, avançar sem medo, permitir que fosse a própria cidade a marcar-me o passo. Nova Iorque exige uma entrega sem contemplações. Era melhor cavalgá-la a deixar-se pisar por ela.

No domingo, apanhei o metro em Queens, onde estava a ficar em casa de uma prima, até Village. Como cheguei cedo demais, meti-me na mítica livraria The Strand e estive a folhear livros velhos durante algum tempo. Pouco antes das quatro da tarde, atravessei a Broadway e percorri a East 11th, seguindo a numeração ascendente, até que uma voz vinda das alturas me fez parar. Era a Catherine, sentada nas escadas de incêndio de um prédio antigo.

O apartamento era de uma beleza inquietante. Tectos altos e abobadados, estantes brancas encastradas, cortinas de pesado veludo, brinquedos antigos. Vermelhos e verdes com pormenores prateados e pátina. Parecia o décor de um filme do Almodóvar, se o Almodóvar fizesse um filme em Nova Iorque.

Catherine deu-me um abraço, ofereceu-me metade do LSD e levou-me até às escadas de incêndio, onde se viam duas cadeiras de praia e uma mesinha. Conversámos aí durante uma hora, depois deitámo-nos no chão do apartamento, ao lado das grandes janelas, banhados pela luz do final do Verão. Conversámos muito.

Por volta das sete, fomos dar um passeio. Demos as mãos enquanto caminhávamos, como se flutuássemos na direcção do rio, e a Catherine disse: «Neste momento, somos o par mais insuportável de Manhattan.» Sentámo-nos diante do Hudson e eu pensei noutras cidades com rio que, de uma forma ou de outra, marcaram a minha vida: Madrid e o seu triste Manzanares, Buenos Aires e o seu Rio da Prata, o Mapocho de Santiago e o Ródano de Genebra.

Nessa noite, fiquei a dormir no apartamento da amiga da Catherine na East 11th e, na manhã seguinte, já sem os efeitos da droga, dei-me conta de que estava apaixonado.

Toda a gente nos avisa de que Nova Iorque é uma cidade estranha, que pode destruir as nossas ambições e cuspir-nos como um caroço, mas também seduzir-nos, reter-nos e mudar completamente a nossa vida.

Os nove meses que passaria na cidade transformaram-se em dois anos, talvez mais. Regressei várias vezes àquele apartamento, para jantar e beber martínis com estranhos de todas as idades e profissões. E seiscentos e trinta e seis dias depois do nosso primeiro encontro lisérgico, Catherine e eu casámo-nos ali mesmo, no apartamento da East 11th, lendo os nossos votos em duas línguas diante de amigos e familiares.

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